domingo, 4 de março de 2012

A última entrevista de Guimarães Rosa

A última entrevista de Guimarães Rosa:
Uma preciosidade histórica da línguaportuguesa: a entrevista realizada pelo escritor e jornalista português ArnaldoSaraiva, em 24 de novembro de 1966. Guimarães Rosa morreria menos de um anodepois de tê-la concedido.



Eis o homem. O homem que em menos de 20anos, com sua prosa, seu estilo, sua literatura — sem os favores profissionaisda medicina, que pode dar saúde mas ainda não deu gênio (cf. alguns prêmiosNobel), conquistou o Brasil, Portugal, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos,o mundo, não?
Repara no corpo: mau grado as ligeirasameaças de obesidade, parece atleta, cavaleiro que foi, ou de bandeirante, queda língua é. Vê como está sobriamente elegante, distinto, sorridente, calmo,aristocrata, como convém a um embaixador (ou não estivéssemos num salão doItamarati). Mas nada da pose ou dos gestos artificiais com que outros tentamiludir a mediocridade. Quem esperou quase quarenta anos para publicar oprimeiro livro, ou quem avançou sozinho pelos grandes sertões da língua, nãoprecisa ter pressa nem pedir emprestado um corpo, uma casaca, máscaras.
Lá está o lacinho (ou gravata-borboleta,meu chapa?) simetricamente impecável, fazendo pendant com os óculos claros, tãoclaros que ainda esclarecem mais os olhos sempre inquiridores, atentos. E écurioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Ita­­birade Drum­mond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de con­tar,de ser ouvido. Até nisso parece grande o seu amor à língua. Mal me sentei, jáele me começou a falar de Portugal e de escritores portugueses...
Estiveem Portugal três vezes. Na primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia acaminho da Alemanha. Na segunda, em 1941, passei lá quinze dias, em cumprimentode uma missão diplomática que me fora confiada em Ham­­burgo. Na terceira, em1942, passei um mês, pois estava já de regresso ao Brasil, por causa da guerra.
Duranteessas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores?
Não. Até porque eu ainda não era“escritor” (“Sagarana”, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que meinteressava mais era contatar com a gente do povo, entre a quais fiz algumasamizades. Gosto mui­to do português, sobretudo da sua integridade afetiva. Obrasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia,enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minhafamília do lado Gui­marães é de Trás-os-Montes. Em Minas o que se vê mais é acasa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma “ilha” transmontana.
Masnão chegou a conhecer Aquilino?
Conheci Aquilino (Aquilino Ribeiro), masacidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que aBertrand) e, quando pedi al­guns livros dele, o empregado per­guntou-me se euqueria co­nhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modoobtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei algunsinstantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecidoenquanto de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim(porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei doassunto.
Nãosabe que, justamente numa crônica motivada pela sua ida ao Brasil, Aquilinocolocou o seu nome, logo em 1952, ao lado dos de José Lins do Rego, GilbertoFreyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco,que, segundo ele, eram os "notáveis escritores e poetas" que estavama "encostar a pena contra a lava" que ia no Brasil "sepultandoprosódia e morfologia da língua-mater"? Eu creio mesmo que é essa uma dasprimeiras referências ao seu nome, em Portugal...
Não sabia dessa curiosa referência doAquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação doConsulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem. Sei de outra referênciafeita, anos depois, salvo erro, por um irmão de José Osório de Oliveira.
Voltandoa Aquilino: acha que recebeu alguma influência dele? Já, pelo menos, umcrítico, o mineiro Fábio Lucas, notou alguns “pontos de contato nadadesprezáveis” entre a sua obra e a de Aquilino.
Eu gosto de Aquilino, sobretudo da“Aventura Maravilhosa”, mas não creio que dele tenha recebido algumainfluência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. Averdade é que antes de 1941 só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, co­moinfelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritoresportugueses vivos. E, como sabe, “Sagarana”, foi escrito em 1937.
Umgarçom do Itamarati entra com um copo de água, e pergunta se precisa maisalguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse umbeirão ou um transmontano. Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Comoencara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais euniversitários portugueses?
Em relação a mim, houve por aqui (noBrasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que,curiosamente, ao que parece, não houve em Por­tugal. Pensaram alguns que euinventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição.Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, talcomo era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anosligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes paralá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eutenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas queeu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias queexistem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como FernãoMendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, umapalavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nuncadisse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem paraescrever foi a” História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias denaufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Ber­nardoGomes de Brito e publicados em 1735). Já vê, por aqui, que as minhas “raízes”es­tão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande adistância “linguística” que me se­para dos portugueses.
Eupenso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Gui­marães Rosahá muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa,coletiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muitoque não tenha citado ne­nhum livro de ca­valaria, nem ne­nhuma novela bu­cólica,pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra,sobretudo no “Gran­de Sertão: Veredas”...
Sim, li muitos livros de cavalaria quandoera menino, e, por volta dos 14 anos, entusiasmei-me com Ber­nardim (BernardimRi­beiro), e depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Ca­milo, masquem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmoparte da convalescença ler “Os Maias”; este ano já reli quase todo “O Crime doPadre Amaro” e parte da “Ilustre Casa de Ramires”). Camilo, leio-o como quemvai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui aPortugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquelejantar da Quinta de Tormes). Aliás deixe-me que lhe diga que me torno muito materialistaquando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidasque há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eugostaria de voltar é Portugal...
...que, naturalmente, o receberá de braços abertos, em festa. Mas permita-me aindauma pergunta: como “enveredou” - e penso que a palavra se ajusta bem ao seucaso - pelo campo da “invenção linguística?
Quando escrevo, não pen­so na literatura:penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas,junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca seconfunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima deenriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, maisviva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: euquero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil,seja de Portugal, de Angola ou Mo­çambique, e até de outras línguas: pela mesmarazão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade comoao campo. Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem àgíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Por­tugal— será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto?Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeitopor inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-osem­pre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever,para mim, é como um ato religioso. Tenho montes de cadernos com relações depalavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre umca­derninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bomfosse ouvido — até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um poucoarbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não podeser só realizada por mim.
GuimarãesRosa vai buscar uma fotografia para me mostrar onde levava o caderninho denotas, nas boiadas: vai buscar uma pasta com a correspondência com um seutradutor norte-americano, para me mostrar as dúvidas e dificuldades deste, e otrabalho, a seriedade e a minúcia com que as vai resolvendo uma por uma(escrevendo, ele próprio, preciosas autoanálises estilísticas ou consideraçõesfilológicas). E, entretanto, vai-me fazendo outras confissões interessantes.Por exemplo: “gosto das traduções que filtram. Da tradução italiana doCor­po de Baile gosto mais do que do original.” Ou: “Estou cheio de coisas paraescrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde tambémnão é muita.” Ou: “Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou paracasa, onde trabalho até tarde.” Ou: “No próximo ano, vou publicar um livroainda sem título, com 40 estórias” (que têm aparecido quinzenalmente, no jornaldos médicos “O Pulso”, onde frequentemente aparecem também cartas ou a atacá-loou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: “eu não gosto de dar, nem douentrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ouque disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tãoseguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma exceção...”.
Nota: Entrevista realizada pelo escritor e jornalista Arnaldo Saraiva, em 24de novembro de 1966. Publicada no livro “Conversas com Escritores Brasileiros”,editora ECL em parceria com o Congresso Portugal-Brasil.

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