Em um dia, vivia cercada de empregados em sua vasta mansão. Seu marido, proeminente sábio da região, conhecido e reconhecido como um dos mais – se não o mais – prósperos que aquela vasta região tivera noticia, tinha seus bens multiplicados pelas condições que a vida abençoava.
Viviam em um tempo em que a terra ainda não matava seus homens com menos de um século de vida, o vigor dos primeiros homens, ainda recém caídos do Éden, perduravam por três ou quatro séculos, como se ainda estivessem em uma idade adulta que se compara aos moços de trinta dos dias de hoje. Era no tempo sumério, 10.000 anos antes da história começar a ser contada por Moisés nas escrituras.
Ter muitos filhos era sinal de prosperidade e, mesmo estes não faltavam a ela: dos dez que teve, sete eram meninos, viviam felizes e nada lhes faltava, nem o amor fraternal que une e fortalece qualquer um. Mesmo o dinheiro abundante que possuíam não os desviou: o marido tinha uma visão diferenciada do mundo, e esse diferencial trazia caravanas de todas as regiões para se aconselhar com o grande Jó. Era claro para todos os povos que a relação sadia de um homem com seu Deus trazia prosperidade, saúde, felicidade no lar, e se existia um exemplo claro disso era ele.
Mas agora, de uma hora para outra, o orgulho de Uz, O grande Jó, seu companheiro e pai de seus filhos, é atingido por uma onda inexplicável de desgraças: todos os filhos mortos de uma vez, quando celebravam o prazer de estar um com os outros, o trabalho e os bens acumulados de uma vida próspera perdido para ladrões e para a fúria da natureza.
Qualquer um amaldiçoaria seu dia, mas a mulher de Jó não viu o marido fazer isso. Ele pensava nas coisas como tivessem sabor, e agora, Deus mandava algo amargo, o gosto das coisas amadas que se perdem. Mas o que poderia exigir Dele? - pensava – Era Dele, agradeci enquanto tive, agradeço pelo tempo que pude ter... Deus sabe todas as coisas, do jeito que vim ao mundo voltarei, nú...
Impassiva, viu a série de desgraças sem entender, e isso só veio a piorar quando, depois de tudo, o marido adoeceu, leproso, imundo, coberto de feridas, que coçavam de dia e de noite.
-O que pretende esse Deus que aflige o homem mais justo e temente que se ouviu falar? - Pensava, enquanto arrastava os chinelos entre a poeira em seu luto pelos filhos, vagava onde havia um suntuoso palácio, onde restaram escombros, onde havia bajulação pela prosperidade de um tempo onde tudo fluorescia, mas sobraram o abandono dos amigos que sumiram junto com o dinheiro.
Olhava Jó ao longe, vestido de trapos, coçando-se com um caco de telha, cabeça raspada, o corpo em carne viva, sentado em meio as cinzas de uma destruição repentina, inesperada, tão arrasadora com as tragédias são. Ela olhava e os pensamentos fluíam:
Que deus é esse? Jó fica lá, olhando para os céus, meditando nas grandezas Dele, adorando-o enquanto as feridas estão expostas. Que deus é esse que permite tal atrocidade aos servos mais fiéis? Que dá o bem, permitindo a esperança de iludir-se que o mundo é realmente um lugar que vale a pena, para depois nos expor a mais profunda miséria da alma, do espírito, da carne, à saudade, a angústia de saber que nossos filhos amados, que um dia abundaram com alegria a nossa casa, com sorrisos e bagunças, deixaram apenas a certeza de que nunca mais os veremos.
Talvez, a única coisa que esse deus espera é que nós o abandonemos, de uma vez por todas, após derradeiramente pecarmos de forma irreversível, como todo pecado o é até hoje.
Será que Jó não entende que esse seu deus só espera isso? Que ele desista?
A mulher larga os afazeres domésticos e vai diante do rosto do marido, marcado pelos riscos das lágrimas escorridas entre a poeira e as cinzas, exalando o cheiro de pus e sangue coagulado:
-Jó !– grita ela – amaldiçoa esse seu Deus e morre!
O homem mais justo da terra perdera os bens, os filhos, e agora, sua esposa o queria morto, por ser praga, ser ícone de algo maldito, ele, que um dia foi símbolo de retidão.
Angústia.
A cada dia, mais e mais pessoas se identificam com a mulher de Jó, veem nela lucidez, e não loucura, motivos e razões razoáveis para renunciar o “deus” (com letra minúscula mesmo) que destrói, embora não reclame – e nem lembre Dele – quando é o deus que doa e constrói.
Certa vez, após um letrado fariseu atribuir uma milagrosa cura de Jesus ao príncipe das moscas das fezes (Belzebu), o Mestre ensinou que tal falta é um pecado sem perdão, nessa e na próxima vida.
Enxergamos que é a mão de Deus movendo-se entre os minutos de nossa existência, mas temos isso por maligno por não atender nossos desejos mesquinhos. Esquecemos que esse imenso volume de quinquilharias e cacarecos fica quando partimos, que essas mansões e carros se dissolvem em ferrugem, lodo e poeira, que essa tecnologia é sucata em potencial, e todas nossas convicções, taras, ambições, perderão o sentido quando – e se - a velhice chegar, apagando gradativamente nossas memórias e paixões.
“Como fala uma louca, fala você mulher!!” - grita Jó à esposa e a todos os que dizem serem companheiros de Reino, mas não compreendem que o ter e o deixar de ter pode ser o argumento principal do diabo contra você:
“Tire o que deu e ele o amaldiçoará!” - disse o diabo, em seu prazer de ver permitida a miséria humana. Sempre funcionou com o demônio, que oferece, e depois tira, deixando o Criador pagar a conta do fracasso alheio.
“Se me adorares” - dizia ele -”te darei os reinos...”. Quantos dirão “Onde é que eu assino?”? Nem imaginam que, o próprio maligno é ferramenta nas mãos do Altíssimo, que usa de sua natureza maligna para cumprir Seus desígnios...
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