Parodiando certo velho barbudo e fazendo um gracejo — espero que eles não fiquem bravos comigo…—, os sociólogos já explicaram o mundo o bastante, agora chegou a hora de compreendê-lo… É preciso tomar cuidado com o preconceito porque ele impede que se entenda o essencial. Eu me incomodo com certa leitura que associa a expansão dos evangélicos à ignorância. Acho que isso mais desinforma do que informa. Há um dado que vocês têm de reter aí para a leitura deste texto porque voltarei a ele: na última década, a corrente evangélica que mais cresceu foi a Assembleia de Deus. Já a Universal do Reino de Deus, do autoproclamado “bispo” Edir Macedo, perdeu 228 mil fiéis. Seus anunciados mais de 3 milhões de fiéis são 1,873 milhão — os da Assembleia são 12,314 milhões (5,6 vezes a mais). Sigamos.
Movidos por certa paixão iluminista que os deixa cegos de tanta luz, os especialistas tendem a associar a expansão dos evangélicos ao triunfo do engodo e da pilantragem. Os fiéis seriam, assim, pessoas enganadas, que se deixam seduzir por falsas promessas e por milagreiros vigaristas. Eles existem? Sim! Estão presentes na religião, na política, na economia, no jornalismo, em qualquer lugar. Afirmar, por exemplo, que uma família com renda per capita acima de R$ 300 pertence à “classe média”, como deram para fazer certos economistas, não deixa de ser uma variante da magia sub-religiosa, não é? Esses economistas, que quase acabaram com a pobreza no Brasil na base da feitiçaria estatística, operam muito mais “milagres” do que qualquer vigarista religioso… Mas não quero me desviar do essencial.
Se faz sentido associar a expansão dos evangélicos no Brasil às mudanças havidas na sociedade nos últimas 30 anos — como elevação dos aglomerados urbanos, drástica redução da população rural, intensa migração interna —, é preciso que se entenda que essa “modernização” trouxe consigo, vejam que interessante, a demanda pela TRADIÇÃO E PELA ORDEM. O que quero dizer com isso? Se os brasileiros que se deslocaram do campo para as cidades perderam seus vínculos originais com a família, tendem, deixados à própria sorte, a se tornar zumbis nas periferias. Isso os leva a buscar uma força que os agregue e que os faça PERTENCER a uma comunidade. Por que não as igrejas evangélicas?
Agora volto lá ao primeiro parágrafo. Quem se ocupa um pouco de estudar o fenômeno ou de ler a respeito sabe que as Assembleias de Deus — há várias correntes sob essa denominação, que não obedece a uma hierarquia única, como a Católica — não são propriamente igrejas “milagreiras”. Não vemos seus pastores a anunciar na televisão a cura de moléstias graves ou a expulsar demônios em ritos midiático-espetaculosos. É evidente que, a exemplo de todas as denominações cristãs, associam a salvação à fé e acreditam na intervenção da Providência. Mas a sua pregação, ATENÇÃO!, está muito mais centrada na defesa de VALORES, especialmente os ligados à unidade da família. Se é uma igreja que cresce no chamado “Brasil moderno e urbano”, esse crescimento se dá com a pregação de valores que podemos chamar “tradicionais”.
Penso agora um pouco na Igreja de Edir Macedo. Na década em que a sua TV Record se tornou, vá lá, bastante “mundana” — a Internet está aí para provar que o reality show “A Fazenda” pode chocar até o mundo animal… —, ela perdeu fiéis. Se houve, como constata o IBGE, uma perda de 228 mil fiéis, trata-se de uma queda acentuada: 11%. É bem verdade que, no período, outras correntes se formaram, como a Igreja Mundial do Poder de Deus, por exemplo, que se desgarrou da própria Universal. Certamente levou parte dos seus fiéis, daí a existência de um conflito muito pouco pio e cristão entre Edir Macedo e Valdemiro Santiago, o bem-sucedido dissidente. Precisaria de mais dados, mas me parece que essas correntes mais midiáticas operam entre si uma troca de fiéis. Parte, portanto, do rebanho transita no mercado do divino ao sabor, também, da propaganda.
A Assembleia, infiro, tende a crescer de forma sustentável e consolidada porque opera numa esfera que produz alterações que tendem a ser permanentes. As correntes que dão excessivo valor às relações de troca com Deus podem ter ascensão vertiginosa, mas esbarram, não tem jeito, no peso da realidade. O Altíssimo não sai por aí recompensando quem faz muita bobagem com sua conta bancária. Também não costuma resolver os problemas que estão afeitos à medicina. A força desse tipo de discurso é limitada.
CatolicismoE o catolicismo? A coisa é complicadíssima! Não é de hoje, fazendo uma brincadeira, que a Igreja Católica tenta fundir o Deus cristão com Aristóteles, não é mesmo? Embora a força de uma religião seja a sua mística, a Santa Madre sempre tentou emular com a ciência. Converse com o teólogo católico o mais pio, e boa parte do tempo você estará diante de um racionalista incorrigível. Há muito o catolicismo renunciou à intervenção maravilhosa do divino. O catolicismo se tornou, e não acho isso ruim necessariamente, uma ética, uma forma de ver o mundo e de se relacionar com ele. Nesse particular, assemelha-se, sim, ao protestantismo tradicional — que também não cresce, note-se — e à Assembleia de Deus, que se expande.
E por que perde influência e prestígio? Os ditos “Teólogos da Libertação” — na verdade, “escatológicos da libertação” — não hesitariam em afirmar que a Igreja precisa, vamos lá, “se aproximar mais do povo”, “estar mais atenta às suas necessidades”, “associar-se à luta por seus direitos”, essa bobajada toda! A Igreja Católica, a minha Igreja, entrou de modo errado nesse tal “mundo moderno”. Se manteve o apego a alguns fundamentos que certos tolos dizem “reacionários”, renunciou à defesa da tradição e dos valores em nome da “mudança da sociedade”. Num outro extremo, foi invadida por alguns vigaristas que confundem o púlpito com palco.
Ou por outra: a Igreja Católica perde influência quando, numa ponta, tenta ser o que não é — “partido político progressista” — e, na outra, abrigo de vocações duvidosas, mais ligadas ao espetáculo do que à fé. Em qualquer dos casos, deixa de atuar como uma força de orientação e de coesão das famílias — discurso muito presente mesmo nas vertentes pentecostais mais espalhafatosas.
À diferença do que parece, a Igreja Católica perde fiéis não porque seja muito tradicionalista, mas porque se desapegou da tradição, mantendo-a não mais do que na plasticidade meio aborrecida das missas, nas quais é dada pouca chance ao pastor (o padre) de falar verdadeiramente aos fiéis. No que é tradicional, é não mais do que burocrática; ao deixar de ser burocrática, esquece a virtude da tradição em favor de um discurso desastradamente político.
Em síntese: faz sentido que tanto a Igreja Católica quando Edir Macedo tenham perdido fiéis — proporcionalmente, ele perdeu muito mais. Nos dois casos, a tradição mandou um recado à mundanização.
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